Passei a reunir idéias, mau grado meu. Revi minha vida em retrospecto, até à
infância, e sem mesmo omitir o drama do último ato, programação extra sob minha inteira
responsabilidade. Sentindo-me vivo, averigüei, conseqüentemente, que o ferimento que
em mim mesmo fizera, tentando matar-me, fora insuficiente, aumentando assim os já tão
grandes sofrimentos que desde longo tempo me vinham perseguindo a existência. Supusme
preso a um leito de hospital ou em minha própria casa. Mas a impossibilidade de
reconhecer o local, pois nada via; os incômodos que me afligiam, a solidão que me
rodeava, entraram a me angustiar profundamente, enquanto lúgubres pressentimentos
me avisavam de que acontecimentos irremediáveis se haviam confirmado. Bradei por
meus familiares, por amigos que eu conhecia afeiçoados bastante para me
acompanharem em momentos críticos. O mais surpreendente silêncio continuou
enervando-me. Indaguei mal-humorado por enfermeiros, por médicos que possivelmente
me atenderiam, dado que me não encontrasse em minha residência e sim retido em
algum hospital; por serviçais, criados, fosse quem fosse, que me obsequiar pudessem,
abrindo as janelas do aposento onde me supunha recolhido, a fim de que correntes de ar
purificado me reconfortassem os pulmões; que me favorecessem coberturas quentes,
acendessem a lareira para amenizar a gelidez que me entorpecia os membros,
providenciando bálsamo às dores que me supliciavam o organismo, e alimento, e água,
porque eu tinha fome e tinha sede!
Com espanto, em vez das respostas amistosas por que tanto suspirava, e que
minha audição distinguiu, passadas algumas horas, foi um vozerio ensurdecedor, que,
indeciso e longínquo a princípio, como a destacar-se de um pesadelo, definiu-se
gradativamente até positivar-se em pormenores concludentes. Era um coro sinistro, de
muitas vozes confundidas em atropelos, desnorteadas, como aconteceria numa
assembléia de loucos.
No entanto, estas vozes não falavam entre si, não conversavam. Blasfemavam,
queixavam-se de múltiplas desventuras, lamentavam-se, reclamavam, uivavam, gritavam
enfurecidas, gemiam, estertoravam, choravam desoladoramente, derramando pranto
hediondo, pelo tono de desesperação com que se particularizava; suplicavam, raivosas,
socorro e compaixão!
Aterrado senti que estranhos empuxões, como arrepios irresistíveis, transmitiamme
influenciações abomináveis, provindas desse todo que se revelava através da
audição, estabelecendo corrente similar entre meu ser superexcitado e aqueles cujo
vozerio eu distinguia. Esse coro, isócrono, rigorosamente observado e medido em seus
intervalos, infundiu-me tão grande terror que, reunindo todas as forças de que poderia o
meu Espírito dispor em tão molesta situação, movimentei-me no intuito de afastar-me de
onde me encontrava para local em que não mais o ouvisse.
Tateando nas trevas tentei caminhar. Mas dir-se-ia que raízes vigorosas
plantavam-me naquele lugar úmido e gelado em que me deparava. Não podia despegarme!
Sim! Eram cadeias pesadas que me escravizavam, raízes cheias de seiva, que me
atinham grilhetado naquele extraordinário leito por mim desconhecido, impossibilitandome
o desejado afastamento. Aliás, como fugir se estava ferido, desfazendo-me em
hemorragias internas, manchadas as vestes de sangue, e cego, positivamente cego?!
Como apresentar-me a público em tão repugnante estado?...
A covardia - a mesma hidra que me atraíra para o abismo em que agora me
convulsionava – alongou ainda mais seus tentáculos insaciáveis e colheu-me
irremediavelmente! Esqueci-me de que era homem, ainda uma segunda vez! e que
cumpria lutar para tentar vitória, fosse a que preço fosse de sofrimento! Reduzi-me por
isso à miséria do vencido! E, considerando insolúvel a situação, entreguei-me às lágrimas
e chorei angustiosamente, ignorando o que tentar para meu socorro. Mas, enquanto me
desfazia em prantos, o coro de loucos, sempre o mesmo, trágico, funéreo, regular como o
pêndulo de um relógio, acompanhava-me com singular similitude, atraindo-me como se
emanado de irresistíveis afinidades... Insisti no desejo de me furtar à terrível audição.